01 enero 2009

Homenagem a Artur da Távola e ao Novo Ano que começou...

Para começar 2009 bem, deixo aqui esta crônica escrita por este fantástico escritor, que nos deixou no ano (agora) passado, mas que, com certeza, eternizado está, através de seus textos que sempre me comovem e tocam o meu coração...
Se você pensa que sabe; que o ano novo mostre o quanto não sabe.
Se você é muito simpático mas leva meia hora para concluir o seu pensamento; que o ano novo ensine que explica melhor o seu problema, ou conta melhor o seu caso, aquele que começa pelo fim.
Não faça exames demais; que o ano novo ensine que doença é como esposa ciumenta: se procurar demais acaba achando.
Se são sempre os outros que são isso e aquilo; que o ano novo ensine a olhar mais para você mesmo.
Que o ano novo ensine que não existe ano novo para a natureza. É tudo um fluxo só. O mundo não sabe que o ano mudou. A gente é que o supõe para abastecer o farnel das esperanças combalidas. Para a natureza, o novo é cada estação, primavera, verão, outono, inverno. Aí tudo muda. O único ente da natureza que comemora o ano novo é o homem. A vida é substantiva, nós é que somos adjetivos. Já viu flor comemorando o ano novo? Então modere a sua comemoração. De qualquer maneira, feliz ano novo.
Se você pensa que viver é horizontal, unitário, definido, monobloco; que o ano novo ensine a aceitar o conflito como condição lúcida da existência. Tanto mais lúcida quanto mais complexa. Tanto mais complexa quanto mais consciente. Tanto mais consciente quanto mais difícil. Tanto mais difícil quanto mais grandiosa.
Felicidade é disponibilidade com paz; que o ano novo ensine a aproveitar os raros momentos em que ela surge.
E de repente me vi sozinho, de calças compridas, buço pintado, gente mais forte, gente mais fraca, banho frio de manhã cedinho, lugar próprio a conquistar, tendo que usar a intuição, os dentes, os punhos, as palavras, o estudo, a solidão e a compreensão definida ou revoltada do que era superior a mim. Aprendi a humilhação, a inveja, a injustiça, a grossura, a evasiva, a franqueza, o castigo, o medo de Deus, que depois perdi ao encontrá-Lo, a enfrentar limpamente o chefe de disciplina, a segunda época, o poc-poc de figurinhas, o colega ladrão, o amigo mais velho, antipatias inexplicáveis, a turma, a dor de ouvido, o coração aos pulos frente àquele ser amado, a ficar sem saída, a vencer o medo da história que me contaram do menino sonâmbulo que caiu da janela. Que mão secreta me guiava? Intuição? Base moral trazida de casa, como me diziam? Consciência precoce dos significados da orfandade parcial? Compreensão? Destino? Meus Guias? Anjo da Guarda?
Que o ano novo ensine a cada menino a seguir o cristal que leva dentro, sua bússola existencial não revelada, sua percepção não verbalizável das coisas, sua capacidade de prosseguir com o que lhe é peculiar e próprio, por mais que pareçam "úteis" e "eficazes" as coisas que a ele, no fundo, não soam como tal, embora façam aparente sentido e se apresentem tão sedutoras quanto enganosas.
Que o ano novo nos ensine, a todos, a dizer as verdades nunca na hora da raiva. Que desta aproveitemos a forma direta e simples pela qual as verdades se nos revelam por seu intermédio; mas para dizê-las depois, quando os bloqueios voltam e é mais cómodo "deixar pra lá". Que a lucidez da raiva guardada para depois, quando ganhar a dimensão da calma mas perder a energia agressiva, sirva para expressar nossas franquezas com carinho e cordialidade.
Que o ano novo ensine que tão ou mais difícil do que ter razão, é saber tê-la. Que aquele garoto que não come, coma. Que aquele cara que mata, não mate. Que aquela timidez do pobre, passe. Que a moça esforçada se forme. Que o jovem, jovie. Que a moça, moce. Que a luz, luza. Que a paz, paze. Que o som, soe. Que o sol, sole. Que o ninho, aninhe. Que a cor, core. Que o abraço, abrace. Que o perdão, perdoe. Que a letra, letre. Que o negro, negre. Que a flor, flora. Que o coração, coraçõe. Que a reza, reze. Que a criança, criance. Que tudo vire verbo e verbe. Verde. Como a esperança.
E se ano novo não existe, exceto na imaginação da gente e se nesta tudo é possível, então que ele sirva para transformar tudo em Verbo. Como no princípio. Pois do jeito que o mundo vai, dá vontade de apagar e começar tudo de novo.